"Ana Terra estava de tal maneira habituada ao vento que até parecia entender o que ele dizia. E nas noites de ventania ela pensava principalmente em sepulturas e naqueles que tinham ido para o outro mundo. Era como se eles chegassem um por um e ficassem ao redor dela, contando casos e perguntando dos vivos. Era por isso que muito mais tarde, sendo já mulher feita, Bibiana ouvia a avó dizer quando ventava: 'noite dos ventos, noite dos mortos.'" Pg. 155
Tomei por desafio ler toda a série épica de O Tempo e o Vento, escrito pelo mestre Érico Veríssimo. Pra quem é do Rio Grande do Sul, a obra e personagens como Ana Terra e o capitão Rodrigo Cambará são velhos conhecidos. Mas para quem não está familiarizado, O Tempo e o Vento é uma série composta por três grandes livros: O Continente (2 volumes), O Retrato (2 volumes) e O Arquipélago (3 volumes). No decorrer das páginas desses livros, nos é contada a história da família Terra-Cambará aliada a própria história do estado do Rio Grande do Sul.
O Continente I é o início dessa história. Apesar de se inciar com uma família sitiada em um sobrado em meio a uma guerra, a história logo volta para os tempos da fundação. Somos levados para as missões, onde os padres jesuítas educavam os índios e apresentados a Pedro Missioneiro, um místico índio que tem visões. Logo adiante, chegamos a uma estância completamente afastada da civilização e então apresentados a Ana Terra, personagem que a princípio esbanja inocência, mas que a brutalidade do tempo em que vive logo trata de endurecer.
É compreensível Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo, até então, partes de O Continente I, terem ganhado edições pela Editora O Globo. São os capítulos mais emocionantes do livro. Ana Terra, a moça simples, rústica, filha de estancieiro, passa por situações que acabam determinantes para existência da família Terra-Cambará. Mãe solteira, precisou largar a estância e tudo o que conhecia após uma tragédia sem precedentes que leva às lágrimas qualquer pessoa que tenha um coração. Junto do filho, da roca e da velha tesoura que cortou o cordão umbilical de Pedro, ela parte para Santa Fé, onde muitos anos depois, Capitão Rodrigo Cambará apeia do cavalo e se apaixona perdidamente por Bibiana Terra.
Capitão Rodrigo é um homem do mundo e, acima de tudo, das guerras. Não tem pátria, apenas ideias e uma paixão enorme por viver. Vivia de guerra em guerra e dormindo com quantas mulheres quisesse até o momento em que bateu os olhos em Bibiana Terra e se apaixonou ao ponto de enfrentar o filho do Coronel Amaral, "dono" daquelas terras, que também tinha se interessado por ela.
"Se vosmecê disser que não quer dançar comigo, vou-me embora desta casa. Se vosmecê disser que não quer saber de mim, vou-me embora de Santa Fé para nunca mais voltar. Mas, por favor, diga alguma coisa!" pg. 223
O livro é maravilhoso, com uma escrita leve e fluída. Os diálogos são intensos e gosto principalmente das conversas do Capitão Rodrigo com o Padre Lara, a quem várias vezes quase enlouqueceu. Mas nessa obra, a personagem que ganha o meu coração é Ana Terra, sem dúvidas. Mulher que teve a força forjada pelo tempo duro em que viveu e por todas as tragédias que permearam sua vida, ela é de quem me lembro quando falo ou penso em O Continente. O amor vivido por Bibiana Terra e Capitão Rodrigo Cambará vem logo depois: não é convencional, é intenso e várias vezes temos vontade esganar o capitão e, da mesma maneira, Bibiana por se permitir viver algumas situações. Mas as páginas vão correndo e vamos compreendendo que apesar de suas falhas e do espírito meio torto de Rodrigo - que Bibiana tinha ciência - ele a amava. E Bibiana, da mesma maneira, não se importava com o que os outros pensassem contanto que ele ainda a amasse.
"Podiam dizer o que quisessem, mas a verdade era que o capitão Rodrigo Cambará tinha voltado para casa." Pg. 297
A guerra é outro personagem frequente e relevante na história, seja na luta sem fim contra os castelhanos, seja na revolução farroupilha, ou, ainda, no sítio sofrido por Licurgo Cambará e sua família no sobrado, muito tempo depois de Ana Terra ter morrido. É o vilão mais cruel do livro, porque quando a gente menos espera, arrebenta a guerra e, consequentemente, arrebentam-se as famílias.
"Mas a guerra para ela não era novidade. Tudo isso já aconteceu antes, muitas, muitas vezes. Viu guerras e revoluções sem conta, e sempre ficou esperando. Primeiro, quando menina, esperou o pai; depois, o marido. Criou filho e um dia o filho também foi pra guerra. Viu o neto crescer, e agora Licurgo também está na guerra. Houve um tempo em que ela nem mais tirava o luto do corpo." Pg.35
A edição que eu tenho da Companhia das Letras é a edição econômica que compila O Continente I e O Continente II em um único volume. Os textos são integrais de maneira que a única coisa que realmente me fez falta em termos de edição foi a orelha da capa, mas sua ausência é perfeitamente normal em edições assim. O prefácio escrito por Regina Zilbernan, doutora em letras e professora na PUC-RS, explica alguns fatores de caráter social e histórico que ajudam na compreensão da obra, assim como um mapa do Continente de São Pedro e a árvore genealógica da família Terra-Cambará.